Um tiro a queima roupa por uma
espingarda. Não tenho ideia do estrago que isso deve causar ao corpo de uma
pessoa. Poderia buscar respaldo científico para me ajudar a descrevê-la. O impacto
de um projétil de chumbo de uma determinada distância. Deflagrado por um
artefato bélico provavelmente de longa data. Quase todo enferrujado, diga-se de
passagem, com cheiro de óleo Singer, não por isso menos letal. Irrompendo a caixa
torácica de uma mulher de um metro e setenta, vinte oito anos, caucasiana
branca. Peso a cima do IMC recomendado. Lançada ao chão talvez mal varrido de
uma casa sem os padrões de conforto urbano no Estado de Rondônia. Cidade sem
muitos padrões de conforto urbano.
O relato enfadonho desse fato não
importa. Uma mulher foi morta. Muitas mulheres são mortas. Talvez agora, outras
mulheres estão sendo mortas. Mas as condições em que uma pessoa é morta nos parecem
sempre mais relevantes das que outra pessoa é morta. A morta a que me refiro tem
uma condição relevante. O que não consigo entender; pois, todas as mortes
possuem uma condição seja ela qual for relevante! A morta aqui vivia do
extrativismo. A natureza servia seu sustento e lhe provia sem contanto
comprometer-se integralmente. Ao contrário da atividade de extração castradora
do bioma amazônico que em maior ou menor grau nunca é dado um mínimo de
relevância. Mas a minha morta, eu espero
ao fim desse texto, também sua morta, foi a óbito por um “pau- mandado”, um
burocrata digamos... privado! Tão mais eficiente quanto um público. E põe
eficiência nisso. Foi apenas um tiro. Eficiência: menos custos, mais benefícios
O “pau-mandado” é um indivíduo cuja
conduta ou significado dela pouco importa. Não. O “pau-mandado” não é um indivíduo,
é uma coisa. Um objeto abjeto de pronta execução de uma dada ordem deliberada verticalmente.
E de quem é esta ordem e porque desta podemos falar agora de uma morta. Poderia
denunciar agora uma macro-estrutura de poder com fins econômicos e disparates
políticos cujos interesses estão à cima de uma morta que pode se passar cinicamente
por uma morte irrelevante. Ou resumir tudo numa questão da Questão do Conflito
Agrário no Brasil. Não vou delatar. Por que minhas limitações, nossas
limitações (não duvide disso) só nos permite olhar a fim de entender a
relevância dessa morta.
Só olhar é conveniente no século XXI.
Tomo aqui conveniente no sentido de seguro. Lembre-se que estamos falando de
uma morta. E como também, pelo menos eu entendo, é seguro olharmos pela
perspectiva do outro, vou eu tentar então me projetar no olhar do outro. Mas
qual outro! Da morta, sem chance! Do burocrata bem aplicado, não dá... Ele não
tem olhar. Da macro-estrutura de poder, muito menos, ela tem mais olhares que
um aracnídeo peçonhento. Do Estado, no meu estado não daria para ver nada. Da
imprensa, eu iria ver... não, não eu não iria ver... De quem então?
Dinhana Nink tinha um filho de cinco
anos que viu sua mãe ser brutalmente assassinada por um tiro de espingarda em
sua própria casa na região de Nova Califórnia, Rondônia no dia 31 de Março de
2012, por denunciar a exploração e apropriação ilegal de terras onde famílias
retiram sua fonte de alimento e renda para sobreviverem. Meu olhar, seu olhar,
é dessa criança. Que vê uma tragédia na sua frente sem poder fazer nada. Que
aceita a condição imposta atônita, estarrecida, passivamente expropriada de seu
semelhante. Podemos nos projetar no olhar dessa criança, mas nunca, nunca
poderíamos fazer o mesmo com sua dor. 
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