Por Raffael Lima
Madrugada
de Domingo, dia 22 de Janeiro de 2012, um grande efetivo da polícia militar do
Estado de São Paulo se organiza estrategicamente ao redor de um espaço de mais
1 milhão m² ocupado por entre 3000 a 9000 mil famílias chamado Pinheirinho na
zona sul de São José dos Campos. A partir de então, começou aquele que seria
mais um golpe, não só nos direitos humanos , mas na condição humana.
Como
entender quando um grupo formado por mulheres, idosos, crianças, assalariados,
desempregados, famílias inteiras decidem se auto orientar, ocupar e atribuir
função social a um espaço cujo dono é réu num processo federal em uma cidade
que ostenta um longo e maquiado déficit habitacional; e é brutalmente oprimido
e desamparado pelo poder público na esfera estadual e municipal cuja
responsabilidade aparente era justamente promover melhorias nas condições de
vida também dessas pessoas. Visto dessa forma, parece contraditório,
estarrecedor e revoltante, mas não o é segundo a lógica da política vigente, a
orientação jurídica pertinente, a mídia de maior abrangência e a classe social
dominante; posto que se fez valer justamente o que estes assim coordenaram: a
expropriação sumária por meio de violência desmedida.
Mas
afinal de contas o que legitimou os atos referidos do poder jurídico político do
Governo Estadual e da Prefeitura com o aval direto e indireto de outros setores
sociais e midiáticos? Como é possível a reintegração de posse quando o detentor
da "posse" é uma massa falida cujo maior credor era a União. A questão talvez não
sejam estas e sim como um grupo de pessoas pode adquirir uma propriedade de
“outrem” sem, contudo, não tê-la comprado? A resposta tem caráter sistêmico e
possui um precedente fundamento filosófico muito adequado ao caso. Pode-se até arrolar uma
discussão bizantina acerca dos recursos legais e imediatos que autorizaram,
consentiram e promoveram a barbárie por meio de balas de borracha, gás
lacrimogêneo, spray de pimenta, caras feias, coturno e recalque; mas só, é
claro, terá efeito demagógico, muito típicos da mídia corporativa pois cobre apenas a aparência dos fatos como o foi
no Pinheirinho. Por mais que pareça uma questão complexa, é uma questão simples
que impulsiona esses acontecimentos: há um conceito, uma construção que
ideologicamente orienta em uníssono as ações dos detentores do poder por trás
do escudo da tropa de choque paulista: a propriedade privada como direito
natural e divino.
Para
tanto, é necessário elevar essas questões a um contexto mais geral. Partindo do
período histórico de formação das bases do pensamento liberal no século XVII,
que veio a se tornar hegemônico no século XXI, relacionar-se-á estritamente o
conceito de propriedade privada, como um dos vieses dessa mentalidade, ao
contexto específico dos acontecimentos da história recente. E é nos escritos do
Segundo Tratado de autoria do paizão do liberalismo político, John Locke que
poderemos entender melhor como a idéia de propriedade foi construída e como a
promiscuidade do governo do estado em relação a ela é justificada.
Locke
não foi o primeiro e nem o último a delinear um pensamento político sobre a
propriedade, Hobbes e Rousseau também o fizeram, mas ressaltaram que a posse de
bens só poderia ser garantida no estado em que houvesse contrato social. A
propriedade privada não é um direito natural e sim civil. A grande sacada do
Liberal inglês foi justamente inverter esses pressupostos e adicionar um
caráter divino à exclusividade material; pois esta, no direito civil, não é suficientemente
garantida ao erário da burguesia em ascensão, qualquer rei bastardo poderia
tirar um impostozinho ali, qualquer nobre sem melanina poderia se dá melhor
com uma burguesinha aqui e tal.
É inegável que o capitalismo nesse período já
estava em fase propícia de consolidação e sua classe ostentava de expressivo poder
econômico, porém o regime político ainda era monárquico e a mentalidade da
nobreza ainda fazia eco, ou seja, como esta também tinha um direito natural que
legitimava seu poder político pelo sangue azul - bebe e a hereditariedade, que
não encontrava exame de DNA disponível na época, a burguesia encontrou na lábia
do Locke o discurso providencial que faltava para gozar de prestígio político e
social.
Sendo
assim, o gringo resgata o estado natural de Hobbes, exclui a parte em que um
come o outro, isola-o como estado de guerra; pega o estado natural de Rousseau,
tira a parte da preguiça do bom selvagem e pronto! Tem o Locke o estado de
natureza só da burguesia, a partir daí ele coloca o suor da labuta weberiana (desculpe
o anacronismo) mistura com a máxima extenuante do decrépito testamento quando diz
que deus expulsou o homem do paraíso não o proibiu de dominar a
natureza, mas que o deveria submetê-la ao seu próprio braço. Assim, ele começa
a devolver o bulling à nobreza e ao
rei chamando-os de preguiçosos, antiquados e bastardos; e, sem saber, insinua
que posteriormente o movimento hippie terá seu paradigma a partir daí.
Está
exatamente aí o pressuposto que sai do século XVII por meio de embarcações
cheias de ratos e chega ao século XXI de jatinho particular cheio de mais ratos, que
trata da correlação com o caso Pinheirinho. As concepções de Locke sobre a
propriedade privada como direito natural e divino faz com a burguesia se sinta
social e moralmente superior a nobreza e de quebra superior aos pobres, pois se
deus fez todos iguais e os incumbiu do trabalho como meio de obter propriedade
privada, estes o são o grande responsável por sua própria miséria.Legal,né! Como poderia
uma massa de pobres, mesmo organizada, o que pra eles é pior ainda, tomar posse
"gratuitamente" de um terreno de quem quer que seja. É um exercício de lavagem
cerebral para a classe dominante reprogramar seu próprio ideário também dominante,
é o abandono de sua própria identidade permitir que os pobres se dêem bem com
tal feito. Cada um por si deus contra
todos, já dizia a canção.
Desse
ponto que não há mais o que dizer aqui, passamos ao papel do governo do estado,
sem com isso não excluir o Estado maior que é regido pela mesma lógica, mas o
primeiro é o que totalmente se enquadra nesse contexto e o que definitivamente
possibilitou tatuagens à flor da pele feitas com bala de borracha em toda a anatomia de crianças a
idosos. Se o direito a propriedade privada é a galinha, ou melhor, o peru dos
ovos ouro da burguesia é claro que o Estado burguês depois de suas revoluções
não teria a função de conceder propriedade privada, mas sim de protegê-la –
contra os ocupantes de São José dos Campos, por exemplo.
Os teóricos liberais foram exímios arquitetos
filosóficos do Estado liberal após Locke: o aparato opressor tem a função de
garantir a propriedade privada; não pode haver, ao menos como gostariam
amplamente, nenhuma interferência estatal no privado. Não se pode meter o dedo,
ou melhor, a mão no bolso da vida econômica, os indivíduos são livres na medida
em que podem pensar, votar, se fingir de morto e dá a patinha, assinarem contrato
entre desiguais e venderem sua força de
trabalho e sua paciência. O Estado só pode intervir na vida privada quando a
ordem e a moral da classe dominante forem ameaçadas. O executivo do estado é o
que mais atende aos interesses da burguesia atualmente, embora ainda há em suas esferas
algumas conquistas de direito pela iniciativa civil, mas que ainda assim são
quase inaudíveis e perversamente sufocadas.
As
pessoas que viviam no Pinheirinho já haviam criado um laço afetivo com o lar,
ampliaram os horizontes das relações sociais por meio da busca comum por
direitos, levantaram paredes, cobriram e pintaram casa, abriram espaços de
comunhão de sua fé, bares e pequenos negócios, criaram animais, crianças
nasceram e deram seus primeiros passos naquele terreno acidentado e sem os
serviços públicos de base. A luta pelo direito de estarem inseridos na ordem
urbana sem com isso pretenderem está isentos de tributo decorrente disso, de
poderem apenas sobreviver e recomeçar na parte que lhes cabe nesse imenso
latifúndio. Este talvez seja o verdadeiro estado natural e civil, a
sobrevivência comum.
Em
face de tudo isso, no setor de purgatório do inferno, o diabo com toda a sua
nobreza não ficou insensível aos fatos; resolveu ampliar o castigo ao grande
responsável pelo pandemônio criado fora dos seus vastos feudos: John Locke foi
empalado sutilmente por um pinheiro pela mão direita de Rousseau e a mão esquerda
de Marx. Podre Locke, não previu em seu reto à garganta o direito natural e
divino da propriedade privada.
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