domingo, 28 de outubro de 2012

A liberdade de “A nós a liberdade”

Por Raffael Lima

                     
                 Discorrer sobre o conceito de liberdade, mesmo que seja delimitado aos limites estéticos que compõe a linguagem cinematográfica, é uma tarefa árdua pela multiplicidade de abordagens que o termo recebeu do pensamento político e filosófico de vários autores através dos séculos. Trazer todos os conceitos a baila para um diálogo pontual sobre um tema tão abstrato é pretensioso aos interesses deste texto; porém, faz-se necessário analisar com respaldo teórico, sob pena de este tornar-se também abstrato. Pelas limitações que este pequeno ensaio se propõe, limitar-nos-emos a entender o que é liberdade na perspectiva do que não é; segundo os elementos cerceadores que se apresentam no filme. Para tanto é inegável a contribuição dos conceitos marxistas para compreender como são moldadas as relações sociais presentes no filme de René Clair.  
            “A nós a liberdade” é uma produção que data de 1931 e que influenciou o notório filme “Tempos modernos” de Charles Chaplin de 1936. O filme trata da sociedade industrial baseada no modelo de produção fordista e taylorista.Tendo como cenário na maioria dos planos em preto e branco   estruturas hierárquicas como a prisão e  a indústria. O enredo é desenvolvido pelas ações dos personagens Émile e Louis, que motivados pelo querer-ser livres, vão dando movimento de forma bem humorada a narrativa carregada de peripécias protagonizadas pelos dois. O desdobramento final dá título ao filme quando pela indignação e recusa do modelo de condução da vida, que aparentemente não fornece opções, os une novamente, antes separados concreta e socialmente, para saírem errantes e livres construírem sua própria liberdade.
            O filme tem início numa prisão e aparece, adiantando uma leitura geral,  como uma perspectiva contrária ao cenário da indústria. A prisão como esfera destinada aos transgressores do modelo de aquisição de bens pelo trabalho e a indústria como ingresso ao modelo pelo trabalho. Contraditoriamente esses dois espaços fornecem aos seus ocupantes uma disciplina militar de organização e produção que os tornam análogos. A hierarquia que conduz a organização social em ambos os âmbitos confina em igual medida as relações humanas.
            As cenas que tratam da esfera industrial descrevem a divisão do trabalho e a condição mecânica com que os trabalhadores contribuem com a produção. A alienação do processo produtivo (MARX,18??) gera uma apatia nas expressões dos operários que se quedam sentados fazendo movimentos repetitivos e que constantemente são “vigiados” por um responsável com postura militar,gestos firmes e olhar atento. Este mesmo trecho é reproduzido na prisão no íncio da película. Os elementos que compõem as cenas desse episódio são reveladores da condição imposta aos operários pelo modo de produção capitalista industrial. A venda da força de trabalho como apropriação de tudo que é produzido com os meios de produção é destinado ao acúmulo de capital (Marx, 18??).  Tal ordem só é quebrada pelo personagem Émile que movido pela paixão por uma operária e alheio ao “alheio” promove de modo muito cômico uma interrupção no processo produtivo. Com o princípio de desordem implantada é imediatamente acionado as forças coercitivas de dentro e fora da fábrica.
                        O personagem Louis é o proprietário e amigo de Émile quando viviam na prisão e por conta do qual conseguiu escapar. Louis a princípio é um anti-herói, um mero larápio que foi se afortunando com pequenos golpes até edificar uma fortuna com a abertura de uma fábrica. Sua vida é cercada por acionistas e bajuladores, usa uma vestimenta distinta, reside numa mansão com muitos empregados e é relacionado com uma mulher de costumes requintados e conduta ilibada. Começa a sofrer uma reviravolta quando encontra o parceiro de cárcere. Protagonizam a partir de então cenas hilárias de ruptura com o modo de conduta e costumes burgueses. Recebe a visita de vários indivíduos de sua época de golpista e é chantageado por eles. Aqui talvez, além dos princípios e costumes da moral burguesa, tem-se uma crítica acerca da origem do capital da empresa capitalista, com o foco racionalizado em busca do acúmulo de riqueza sem medir, contudo, os meios e as conseqüências para tal fim, todo tipo de “acordo” se faz justificado.                        
            Podemos traçar a partir de então com base nas relações sociais dos  personagens configuradas de forma distinta mas não livre dentro da lógica capitalista a noção de liberdade na temática do filme. Um operário oprimido pelas forças de coerção do Estado constituído pela mesma classe social em que os donos dos meios de produção fazem parte de um lado e do outro, este último, o proprietário que se vê “oprimido” pelos que ficaram à margem do modo estabelecido de constituição de riqueza. O modo de produção, sendo assim, não produz bens e sim relações sociais (Marx,18??).
 A condição de não liberdade vai se acentuando ao longo da história e fortalece novamente a amizade que surgiu fora desse modelo econômico, mas criado para mantê-lo. Após serem indistintamente perseguidos por policiais e ladrões, decidem abandonar tudo. A moça bonita com a qual Émile se apaixonou, mas que era apaixonada por outro, as fábricas, uma delas totalmente auto-gestadas, que Louis transferiu aos trabalhadores uma vez que foram constituídas por capital escuso. No fim, uma canção é entoada pelos operários que desfrutam de ócio e paz à beira de um rio enquanto são vistos por Émile e Louis que, errantes, seguem brincalhões e felizes à sua própria liberdade.       
            Tomada pela perspectiva da opressão definidora dos infortúnios dos personagens, a liberdade surge como uma condição de felicidade, igualdade e fraternidade. Tais princípios tornaram-se a bandeira da revolução burguesa francesa e não se concretizaram. O que se tem de concreto é o seu oposto, a servidão – opressão. A emancipação promovida pelos heróis do filme de René Clair tem um forte apelo aos sentimentos de amizade-fraternidade como busca de felicidade; mas para tanto, só foi possível de fato uma vez que estes romperam com modelo de relações sociais no qual estavam submetidos e a estruturação hierárquica da fábrica na qual estas relações estavam submetidas.
O filme trata destas questões dentro de um contexto histórico bem determinado no século XX. O capitalismo se apresenta em uma nova fase e outros modos de produção e grupos emergiram tornando muito complexas as relações sociais. Mas não por isso perde o sentido de sua mensagem de liberdade. Os modos de produção e as relações sociais se tornaram de fato mais complexos, mas não extintos. Outras formas de servidão e opressão acompanharam essa complexidade e se estruturaram hierarquicamente com mais vigor e mais aparato coercitivo.
Para a sustentação do acúmulo de capital, hoje financeiro e virtual, o sistema totalitário mercante criou formas de poder corporativo organizacional  e capacidade destrutiva sem precedentes na história da humanidade.A fragmentação e o abrandamento social enfraquece qualquer tentativa de mobilização popular.O Estado é cada vez mais mínimo e conduzido segundo as pertinências de políticas neoliberais , restando a ele apenas  assumir um papel de ordenação militarizada da sociedade.   O homem nunca fora tão predeterminado e alienado até de sua própria condição humana como o é no século XXI.   A atualidade de “A nós a liberdade” nunca foi tão presente, assim como a emancipação de Émile e Louis nunca foi tão necessária. 


                     


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

John Locke e o Pinheirinho: uma aproximação indolente


Por Raffael Lima


Madrugada de Domingo, dia 22 de Janeiro de 2012, um grande efetivo da polícia militar do Estado de São Paulo se organiza estrategicamente ao redor de um espaço de mais 1 milhão m² ocupado por entre 3000 a 9000 mil famílias chamado Pinheirinho na zona sul de São José dos Campos. A partir de então, começou aquele que seria mais um golpe, não só nos direitos humanos , mas na condição humana.
Como entender quando um grupo formado por mulheres, idosos, crianças, assalariados, desempregados, famílias inteiras decidem se auto orientar, ocupar e atribuir função social a um espaço cujo dono é réu num processo federal em uma cidade que ostenta um longo e maquiado déficit habitacional; e é brutalmente oprimido e desamparado pelo poder público na esfera estadual e municipal cuja responsabilidade aparente era justamente promover melhorias nas condições de vida também dessas pessoas. Visto dessa forma, parece contraditório, estarrecedor e revoltante, mas não o é segundo a lógica da política vigente, a orientação jurídica pertinente, a mídia de maior abrangência e a classe social dominante; posto que se fez valer justamente o que estes assim coordenaram: a expropriação sumária por meio de violência desmedida.
Mas afinal de contas o que legitimou os atos referidos do poder jurídico político do Governo Estadual e da Prefeitura com o aval direto e indireto de outros setores sociais e midiáticos? Como é possível a reintegração de posse quando o detentor da "posse" é uma massa falida cujo maior credor era a União. A questão talvez não sejam estas e sim como um grupo de pessoas pode adquirir uma propriedade de “outrem” sem, contudo, não tê-la comprado? A resposta tem caráter sistêmico e possui um precedente fundamento filosófico muito adequado ao caso. Pode-se até arrolar uma discussão bizantina acerca dos recursos legais e imediatos que autorizaram, consentiram e promoveram a barbárie por meio de balas de borracha, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, caras feias, coturno e recalque; mas só, é claro, terá efeito demagógico, muito típicos da mídia corporativa pois  cobre apenas a aparência dos fatos como o foi no Pinheirinho. Por mais que pareça uma questão complexa, é uma questão simples que impulsiona esses acontecimentos: há um conceito, uma construção que ideologicamente orienta em uníssono as ações dos detentores do poder por trás do escudo da tropa de choque paulista: a propriedade privada como direito natural e divino.       
Para tanto, é necessário elevar essas questões a um contexto mais geral. Partindo do período histórico de formação das bases do pensamento liberal no século XVII, que veio a se tornar hegemônico no século XXI, relacionar-se-á estritamente o conceito de propriedade privada, como um dos vieses dessa mentalidade, ao contexto específico dos acontecimentos da história recente. E é nos escritos do Segundo Tratado de autoria do paizão do liberalismo político, John Locke que poderemos entender melhor como a idéia de propriedade foi construída e como a promiscuidade do governo do estado em relação a ela é justificada.
Locke não foi o primeiro e nem o último a delinear um pensamento político sobre a propriedade, Hobbes e Rousseau também o fizeram, mas ressaltaram que a posse de bens só poderia ser garantida no estado em que houvesse contrato social. A propriedade privada não é um direito natural e sim civil. A grande sacada do Liberal inglês foi justamente inverter esses pressupostos e adicionar um caráter divino à exclusividade material; pois esta, no direito civil, não é suficientemente garantida ao erário da burguesia em ascensão, qualquer rei bastardo poderia tirar um impostozinho ali, qualquer nobre sem melanina poderia se dá melhor com uma burguesinha aqui e tal.  
 É inegável que o capitalismo nesse período já estava em fase propícia de consolidação e sua classe ostentava de expressivo poder econômico, porém o regime político ainda era monárquico e a mentalidade da nobreza ainda fazia eco, ou seja, como esta também tinha um direito natural que legitimava seu poder político pelo sangue azul - bebe e a hereditariedade, que não encontrava exame de DNA disponível na época, a burguesia encontrou na lábia do Locke o discurso providencial que faltava para gozar de prestígio político e social.
Sendo assim, o gringo resgata o estado natural de Hobbes, exclui a parte em que um come o outro, isola-o como estado de guerra; pega o estado natural de Rousseau, tira a parte da preguiça do bom selvagem e pronto! Tem o Locke o estado de natureza só da burguesia, a partir daí ele coloca o suor da labuta weberiana (desculpe o anacronismo) mistura com a máxima extenuante do decrépito testamento quando diz que deus expulsou o homem do paraíso não o proibiu de dominar a natureza, mas que o deveria submetê-la ao seu próprio braço. Assim, ele começa a devolver o bulling à nobreza e ao rei chamando-os de preguiçosos, antiquados e bastardos; e, sem saber, insinua que posteriormente o movimento hippie terá seu paradigma a partir daí.    
Está exatamente aí o pressuposto que sai do século XVII por meio de embarcações cheias de ratos e chega ao século XXI de jatinho particular cheio de mais ratos, que trata da correlação com o caso Pinheirinho. As concepções de Locke sobre a propriedade privada como direito natural e divino faz com a burguesia se sinta social e moralmente superior a nobreza e de quebra superior aos pobres, pois se deus fez todos iguais e os incumbiu do trabalho como meio de obter propriedade privada, estes o são o grande responsável por sua própria miséria.Legal,né! Como poderia uma massa de pobres, mesmo organizada, o que pra eles é pior ainda, tomar posse "gratuitamente" de um terreno de quem quer que seja. É um exercício de lavagem cerebral para a classe dominante reprogramar seu próprio ideário também dominante, é o abandono de sua própria identidade permitir que os pobres se dêem bem com tal feito.  Cada um por si deus contra todos, já dizia a canção.    
Desse ponto que não há mais o que dizer aqui, passamos ao papel do governo do estado, sem com isso não excluir o Estado maior que é regido pela mesma lógica, mas o primeiro é o que totalmente se enquadra nesse contexto e o que definitivamente possibilitou tatuagens à flor da pele feitas com bala de borracha em toda a anatomia  de crianças a idosos. Se o direito a propriedade privada é a galinha, ou melhor, o peru dos ovos ouro da burguesia é claro que o Estado burguês depois de suas revoluções não teria a função de conceder propriedade privada, mas sim de protegê-la – contra os ocupantes de São José dos Campos, por exemplo.
 Os teóricos liberais foram exímios arquitetos filosóficos do Estado liberal após Locke: o aparato opressor tem a função de garantir a propriedade privada; não pode haver, ao menos como gostariam amplamente, nenhuma interferência estatal no privado. Não se pode meter o dedo, ou melhor, a mão no bolso da vida econômica, os indivíduos são livres na medida em que podem pensar, votar, se fingir de morto e dá a patinha, assinarem contrato entre desiguais e  venderem sua força de trabalho e sua paciência. O Estado só pode intervir na vida privada quando a ordem e a moral da classe dominante forem ameaçadas. O executivo do estado é o que mais atende aos interesses da burguesia atualmente, embora  ainda há em suas esferas algumas conquistas de direito pela iniciativa civil, mas que ainda assim são quase  inaudíveis e perversamente sufocadas.                  
As pessoas que viviam no Pinheirinho já haviam criado um laço afetivo com o lar, ampliaram os horizontes das relações sociais por meio da busca comum por direitos, levantaram paredes, cobriram e pintaram casa, abriram espaços de comunhão de sua fé, bares e pequenos negócios, criaram animais, crianças nasceram e deram seus primeiros passos naquele terreno acidentado e sem os serviços públicos de base. A luta pelo direito de estarem inseridos na ordem urbana sem com isso pretenderem está isentos de tributo decorrente disso, de poderem apenas sobreviver e recomeçar na parte que lhes cabe nesse imenso latifúndio. Este talvez seja o verdadeiro estado natural e civil, a sobrevivência comum.    
Em face de tudo isso, no setor de purgatório do inferno, o diabo com toda a sua nobreza não ficou insensível aos fatos; resolveu ampliar o castigo ao grande responsável pelo pandemônio criado fora dos seus vastos feudos: John Locke foi empalado sutilmente por um pinheiro pela mão direita de Rousseau e a mão esquerda de Marx. Podre Locke, não previu em seu reto à garganta o direito natural e divino da propriedade privada.